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quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Natal dos Pretos ou Festa Nossa do Rosário, Penha/SC

Natal dos Pretos ou Festa Nossa do Rosário, Penha/SC

Maria do Carmo Ramos Krieger

             Um cartaz anunciava que a Festa de Nossa Senhora do Rosário ou Natal dos Pretos já estava com data marcada dias 5 e 6 de janeiro de 1986, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha, em Penha – litoral Norte do Estado de Santa Catarina: “Natal dos Pretos. Festa tradicional da comunidade, com apresentação do Moçambique, dança folclórica. Acontecimento único na região, de características africanas trazidas pelos escravos e cultuada até hoje”.
             No início da década de 1980 conheci a festa que 'nasceu'' dos escravos – homens empregados na armação de caça à baleia que fora instalada por volta de 1778 em Itapocorói, bairro que acabou conhecido como Armação de Itapocorói.

              Cultuando suas origens, os escravos congregavam-se em torno da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, santa lembrada dia 7 de outubro no calendário da Igreja Católica. Porém os escravos transferiram tal comemoração para o dia 26 de dezembro – única folga que eles ganhavam de seus 'senhores'. Assim eles aproveitavam o dia 25 de dezembro, Natal, como data importante para o início da festa, daí a origem do nome Natal dos Pretos. Uma Santa Missa na Igreja Matriz era o primeiro momento do encontro, embora ficasse conhecida como Derradeira Noite, com a entrega das coroas do Rei e da Rainha do Rosário. Feitas em cobre, eram levadas até a Casa do Descanso, residência na qual havia uma mesa com toalha e flores preparada para recebê-las, permanecendo ali até a manhã seguinte. Dependendo do local de residência do Rei, a casa poderia ser próxima à dele ou à igreja, como aconteceu por muitos anos, sendo utilizada a residência do senhor Evilásio Adriano, no centro de Penha, onde as coroas descansavam até a manhã seguinte.
              No segundo dia dos festejos o grupo de dançantes/cantantes (o mesmo que acompanhava as cerimônias da Festa do Divino em Penha), seguiam os reis, ao som da dança folclórica Moçambique até à Casa de Descanso para apanhar as coroas. O percurso de volta à igreja era marcado pelo acompanhamento dos 'empregados de vela', pessoas amigas dos reis que as seguravam acessas e usavam faixa de cetim azul claro. O cortejo oficial, com outros súditos que se faziam presentes, como os Pajens do Rei e da Rainha, que os precediam levando as coroas em almofadas, o Juiz e a Juíza do Mastro (o mastro, anunciando a festa, já havia sido erguido na praça próxima à igreja uns dias antes e cabia aos juízes zelarem por ele), membros da Irmandade do Rosário, vestindo suas opas – capa branca com sobrepeliz azul, e o porta estandarte, que segurava um, com a imagem de Nossa Senhora do Rosário estampada, ganhava a rua do centro de Penha, principalmente ao redor da Igreja Matriz, rezando, cantando e homenageando Nossa Senhora do Rosário.
               A coroação durante a Missa do dia 26/12, o almoço oferecido logo após, a procissão da tarde com o encontro dos familiares foram momentos sempre especiais os quais assisti em dez anos de minhas temporadas de verão na localidade.
             O Natal dos Pretos foi muito significativo, como rito de passagem num sonho: ser Rei ou Rainha do Rosário. Mesmo que de curta duração, pois o reinado oficial começava na Missa da coroação, às 10 horas da manhã e terminava às 17 horas do mesmo dia, com a indicação de novos Reis do Rosário. Mas de indelével lembrança para quantos participaram dele.
              Em 1906 o Padre Heinrich Lindgens, em visita à comunidade católica de Penha, deixou registrado um texto “Natal no Brasil: muito tempo antes um negro já havia sido escolhido para ser coroado como rei da festa. Sua irmã era a rainha. Duas velhas coroas, que durante o ano ficavam abandonadas na poeira e sujeira, em algum canto da sacristia, foram limpas e, agora, brilhavam reluzente sobre o altar. Eu tinha que aspergi-las com água benta antes da Missa”.
            Apesar dos oitenta anos que separam o registro do padre Heinrich (1906) e o resultado da minha observação no último ano do Natal dos Pretos em Penha (1986), creio serem as mesmas as perguntas a serem feitas: por que os negros continuaram realizando a sua festa, apesar das dificuldades encontradas? Segundo consta, a festa acabou porque os pretos rarearam em Penha. Existe também a hipótese que não havia apoio público municipal, ao contrário do que era, e ainda o é, direcionado à Festa do Divino, quando o Prefeito Municipal destina uma verba para ajudar no custeio da festa; apesar do feriado municipal de 26 de dezembro em homenagem à data, ter proporcionado ocasião para a celebração (acabou sendo extinta com o próprio fim da festa).
              Naquela época o padre Heinrich relatava que “um boi gordo e muitas galinhas seriam servidas no almoço festivo”. Na década de 1980 eu visitava as preparações na cozinha e constatava a quantidade de batatas, galinhas e verduras preparadas para o público. Trabalho de voluntários que transformavam a cozinha num grande espaço comunitário.

              Se a Coroa revelava um código de ascensão ao poder, representando, dentro do ciclo natalino a dramatização de um grupo, as respostas e as relações deste mesmo grupo com o mundo real e o da festa, se formos comparar a rotina diária com o ritual de dois dias, vivendo o sonho
de ser Rei ou Rainha do Rosário, representavam valores simbólicos importantes, pois de operário/pescador/funcionário público o homem comum passava a ser Rei.
               Na década de 2000 aconteceram algumas tentativas de reinvenção da festa, na Capela de Nossa Senhora Aparecida, no bairro do mesmo nome, em Penha, por pessoas ligadas a movimento afro. Não deram resultado esperado.
               A eternização do cerimonial continua valorizando uma festa que, registrada em fotos, entrevistas, textos, serviu de estudo e pesquisa para muitos trabalhos, onde promessas à santa, roupa de domingo, foguetório, mastro e novenas conferiam ao Rei e à Rainha do Rosário o 'status' de prestígio e poder naquela que foi uma das  expressivas manifestações culturais de afro descente de Santa Catarina: a Festa do Rosário ou o Natal dos Pretos em Penha.
Maria do Carmo Ramos Krieger, historiadora, pesquisa a cultura popular de base açoriana em Penha, é diretora da EEB Manoel Henrique de Assis/Penha.

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