Natal dos Pretos ou Festa Nossa do Rosário, Penha/SC
Maria do Carmo Ramos Krieger
Um cartaz anunciava que a Festa de Nossa Senhora do Rosário ou Natal dos Pretos já estava com data marcada dias 5 e 6 de janeiro de 1986, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha, em Penha – litoral Norte do Estado de Santa Catarina: “Natal dos Pretos. Festa tradicional da comunidade, com apresentação do Moçambique, dança folclórica. Acontecimento único na região, de características africanas trazidas pelos escravos e cultuada até hoje”.
No início da década de 1980 conheci a festa que 'nasceu'' dos escravos – homens empregados na armação de caça à baleia que fora instalada por volta de 1778 em Itapocorói, bairro que acabou conhecido como Armação de Itapocorói.
Cultuando suas origens, os
escravos congregavam-se em torno da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário,
santa lembrada dia 7 de outubro no calendário da Igreja Católica. Porém os
escravos transferiram tal comemoração para o dia 26 de dezembro – única folga
que eles ganhavam de seus 'senhores'. Assim eles aproveitavam o dia 25 de
dezembro, Natal, como data importante para o início da festa, daí a origem do
nome Natal dos Pretos. Uma Santa Missa na Igreja Matriz era o primeiro momento
do encontro, embora ficasse conhecida como Derradeira Noite, com a entrega das
coroas do Rei e da Rainha do Rosário. Feitas em cobre, eram levadas até a Casa
do Descanso, residência na qual havia uma mesa com toalha e flores preparada
para recebê-las, permanecendo ali até a manhã seguinte. Dependendo do local de residência
do Rei, a casa poderia ser próxima à dele ou à igreja, como aconteceu por
muitos anos, sendo utilizada a residência do senhor Evilásio Adriano, no centro
de Penha, onde as coroas descansavam até a manhã seguinte.
No segundo dia dos festejos o
grupo de dançantes/cantantes (o mesmo que acompanhava as cerimônias da Festa do
Divino em Penha), seguiam os reis, ao som da dança folclórica Moçambique até à
Casa de Descanso para apanhar as coroas. O percurso de volta à igreja era
marcado pelo acompanhamento dos 'empregados de vela', pessoas amigas dos reis
que as seguravam acessas e usavam faixa de cetim azul claro. O cortejo oficial,
com outros súditos que se faziam presentes, como os Pajens do Rei e da Rainha,
que os precediam levando as coroas em almofadas, o Juiz e a Juíza do Mastro (o
mastro, anunciando a festa, já havia sido erguido na praça próxima à igreja uns
dias antes e cabia aos juízes zelarem por ele), membros da Irmandade do
Rosário, vestindo suas opas – capa branca com sobrepeliz azul, e o porta
estandarte, que segurava um, com a imagem de Nossa Senhora do Rosário estampada,
ganhava a rua do centro de Penha, principalmente ao redor da Igreja Matriz,
rezando, cantando e homenageando Nossa Senhora do Rosário.
A coroação durante a Missa do
dia 26/12, o almoço oferecido logo após, a procissão da tarde com o encontro
dos familiares foram momentos sempre especiais os quais assisti em dez anos de
minhas temporadas de verão na localidade.
O Natal dos Pretos foi muito
significativo, como rito de passagem num sonho: ser Rei ou Rainha do Rosário.
Mesmo que de curta duração, pois o reinado oficial começava na Missa da
coroação, às 10 horas da manhã e terminava às 17 horas do mesmo dia, com a
indicação de novos Reis do Rosário. Mas de indelével lembrança para quantos
participaram dele.
Em 1906 o Padre Heinrich Lindgens, em visita
à comunidade católica de Penha, deixou registrado um texto “Natal no Brasil:
muito tempo antes um negro já havia sido escolhido para ser coroado como rei da
festa. Sua irmã era a rainha. Duas velhas coroas, que durante o ano ficavam
abandonadas na poeira e sujeira, em algum canto da sacristia, foram limpas e,
agora, brilhavam reluzente sobre o altar. Eu tinha que aspergi-las com água
benta antes da Missa”.
Apesar dos oitenta anos que separam
o registro do padre Heinrich (1906) e o resultado da minha observação no último
ano do Natal dos Pretos em Penha (1986), creio serem as mesmas as perguntas a
serem feitas: por que os negros continuaram realizando a sua festa, apesar das
dificuldades encontradas? Segundo consta, a festa acabou porque os pretos
rarearam em Penha. Existe também a hipótese que não havia apoio público
municipal, ao contrário do que era, e ainda o é, direcionado à Festa do Divino,
quando o Prefeito Municipal destina uma verba para ajudar no custeio da festa;
apesar do feriado municipal de 26 de dezembro em homenagem à data, ter
proporcionado ocasião para a celebração (acabou sendo extinta com o próprio fim
da festa).
Naquela época o padre Heinrich
relatava que “um boi gordo e muitas galinhas seriam servidas no almoço festivo”.
Na década de 1980 eu visitava as preparações na cozinha e constatava a
quantidade de batatas, galinhas e verduras preparadas para o público. Trabalho
de voluntários que transformavam a cozinha num grande espaço comunitário.
Se a Coroa revelava um código de ascensão ao poder, representando, dentro do ciclo natalino a dramatização de um grupo, as respostas e as relações deste mesmo grupo com o mundo real e o da festa, se formos comparar a rotina diária com o ritual de dois dias, vivendo o sonho
de ser Rei ou Rainha do Rosário,
representavam valores simbólicos importantes, pois de
operário/pescador/funcionário público o homem comum passava a ser Rei.
Na década de 2000 aconteceram
algumas tentativas de reinvenção da festa, na Capela de Nossa Senhora
Aparecida, no bairro do mesmo nome, em Penha, por pessoas ligadas a movimento
afro. Não deram resultado esperado.
A eternização do cerimonial
continua valorizando uma festa que, registrada em fotos, entrevistas, textos,
serviu de estudo e pesquisa para muitos trabalhos, onde promessas à santa,
roupa de domingo, foguetório, mastro e novenas conferiam ao Rei e à Rainha do
Rosário o 'status' de prestígio e poder naquela que foi uma das expressivas manifestações culturais de afro
descente de Santa Catarina: a Festa do Rosário ou o Natal dos Pretos em Penha.
Maria do Carmo Ramos Krieger,
historiadora, pesquisa a cultura popular de base açoriana em Penha, é diretora
da EEB Manoel Henrique de Assis/Penha.
Uma beleza de pesquisa!
ResponderExcluir